sexta-feira, 18 de agosto de 2017



Cultura de Almanaque

As primeiras lembranças que tenho da leitura como prazer, me vêm  da fazenda de meus avós. Lembro-me de tia Zulmira, sentada a mesa da sala de jantar, lendo fascículos de romances, sob a luz de  um candeeiro, para toda a família embevecida. Muito tempo depois soube que eram traduções de romances de Peres Escrich, Ponson du Terrail e, quem sabe de Alexandre Dumas com seu “Conde de Monte Cristo”, “O Colar da Rainha”, ou “Vinte Anos Depois”. Eram as novelas de então. Folhetins.

Um dia, ouvi minha tia-leitora dizer que quando se casasse e tivesse uma filha a batizaria com o nome de Mildred. Uma de suas heroínas. Não se casou. E estou certo de que morreu virgem. É pena. Embora preferisse que a minha inexistente prima viesse a se chamar Joaquina, Antônia ou Manuela.

Na casa da fazenda não havia estante de livros. E, segundo soube, meus avós maternos mal sabiam escrever o nome. Mesmo assim meu avô tinha uma Bíblia, que ainda hoje está em meu poder. Porque a Bíblia? Católico não lia a Bíblia naquela época. E, que eu saiba a religião da família foi sempre o catolicismo. Embora aqui e ali mesclado com um pouco de kardecismo, meu pai e um pouco de advinhos, minha mãe.

Na casa de meus pais, em Manaus,também não havia livros de literatura. Biblioteca. Só livros escolares. Meu pai era comerciário. Não sei qual era a sua escolaridade. Sua letra era muito bonita. Suas cartas corretamente escritas. Minha mãe nunca frequentou escola, mas aprendeu a ler e escrever. A educação das mulheres da família era do tipo prendas domésticas: cozinhar, costurar  e bordar. Enfatizando sempre uma dessas especialidades.

Creio que o gosto da leitura me veio de professoras do curso primário e secundário, D. Mundica Chevalier e Lia Garcia, respectivamente. O casal Garcia (Lia e Alfredo) me infundiram o gosto pelo francês (D.Lia era francesa) e ele pelo inglês (fôra criado por uma família inglesa, os Baird). Daí a minha preferência pelas línguas francesa e inglesa. No Colégio Santo Antônio, dos Garcias, havia sempre competições de composição entre os alunos e eu estava sempre entre os melhores.

O primeiro livro que li foi “Robinson Crusoé” de Defoe. Primeiro e único prêmio que recebi na vida. Porque? Não lembro. Foi no Instituto Universitário Amazonense, dos Chevalier. Unica lembrança do livro, os passos de Sexta-feira na areia da praia. Que medo! Nunca o reli. Foi dessa mesma época o meu interesse por uma coleção de livrinhos de histórias: “Ali-Babá e os quarenta ladrões”, tão atual,” O Chapeuzinho Vermelho”, “ Alice no País das Maravilhas”, eroticamente reinterpretado pelos escritores/psicanalistas de hoje. Me interessavam tanto os textos como os desenhos que os ilustravam. Depois veio a “Ilha do Tesouro”, de Stevenson. Como me chegou as mãos “O Coruja”, de Aluízio de Azevedo? Me comovi. Me apaixonei pelo livro. Lia devagar para não terminar. Daí em diante não parei mais: José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Manoel Antônio de Almeida...Machado de Assis.

Os poetas, li-os primeiramente nos livros escolares, em seguida nos almanaques. Daí a observação irônica de um colega de trabalho, dr. Barreto, que a minha cultura era de almanaque. Eu que nem sabia que tinha cultura. “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu, “Visita a casa paterna”, de Luís Guimarães Junior, “Via Láctea”, de Olavo Bilac e outros que em certos sábados éramos obrigados a recitar, de pé diante de toda a classe, ávida de erros para a gozação posterior. Que vergonha, meu Deus. Se a terra se abrisse ali, eu seria o primeiro a ser tragado.

Isso quer dizer que leio contínua e ininterruptamente desde a década de trinta. Quantos livros? Impossível dizer. De que serviu tanta leitura, se me sinto hoje tão ignorante como ontem. Não importa. Me deram muita emoção. Muito prazer. Conversei com muitos autores. Conheci muitos personagens: nobres, clérigos e plebeus. As vezes fico imaginando o prazer dos cegos lendo no escuro pela ponta dos dedos, porque o simples fato de tê-los nas mãos me sustenta, diverte e estimula.

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