quinta-feira, 18 de janeiro de 2018


A fazenda

A fazenda ficava entre Manaus e Itacoatiara, distrito de Amatari. De lá, diziam ver, de noite, os navios iluminados, aparecerem na foz do rio Madeira. E essa imagem era associada a Cobra-Grande. Boiúna. Lembro-me de um menino que fazia xixi na rede todas as noites, e todas as manhãs prometiam entregar-lhe a Boiúna, se ele não se corrigisse. Cheio de medo aí é que ele fazia. E o pobre apanhava. Essas ameaças eram sempre associadas ao Matinta Perera, uma espécie de Saci de duas pernas; ao Curupira, com os pés voltados para trás; ao Mapinguari, cuja invencibilidade está no umbigo ou a M´boitatá, a cobra de fogo. Fogo fátuo? Personagens que povoam o imaginário amazônico. Os bichos papões do lugar.
Havia ainda as histórias de botos, seduzindo donzelas e de Iaras encantando rapazes. Principalmente os mais bonitos ou bonitas, que a lenda despreza os feios. Os feios são sempre maus: os bonitos sempre bons. Ai de mim! Mas esses eram assuntos para gente grande. Principalmente quando se sabia do nascimento de algum filho de boto. Sonhar a beira dos barrancos, tomar banho no rio, nua, passear de canoa em lagos e igarapés, eram álibis perfeito para o aparecimento súbito de uma barriga grande em qualquer moça.
Lembro-me de tia Raimunda (que não merecia esse nome e em boa hora lhe arranjaram o apelido de Miminha), tia Miminha, passeando de mãos dadas comigo, em frente a casa, me contando que certa vez ouvira o canto da Iara, bem ali, deslizando pelo rio. Essas e outras histórias, essas e outras personagens, não são lendas, não são mentiras, na vida do amazônida. São verdades de um povo cuja vida é comandada pelo rio e pela floresta. Histórias de caboclos. Não confundir com índios. Esses pertencem a outro seguimento do mesmo espaço. 

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018


Hora da virada

Não me lembro bem das noites de passagem de ano, em Manaus, quando era criança ou jovem. Creio que essa festividade se tornou presente, para mim, no Rio de Janeiro, quando passei a morar lá.
No começo, décadas de cinquenta, sessenta, setenta, ainda podia-se flanar pelas ruas do Rio, sozinho, durante a noite. A marginalidade era pontual. Copacabana e o Centro da cidade eram os palcos de todos os entretenimentos, de então.
O meu prazer, mesmo, na noite da virada (como se diz hoje) era caminhar pela praia, as vezes descalço, apreciando e recebendo passes de pais ou mães de santo, em plena praia, ao murmúrio do mar. Os altares eram grandes cavidades na areia, onde, protegidas do vento, se colocavam as imagens de Iemanjá, a rainha da festa, rodeada de lírios e velas. Toda a praia era um imenso baixo relevo dedicado a Deusa.
Ao se aproximar da meia noite, as charangas começavam a tocar, os tambores a ruflar, os fogos desciam em cascata do topo do Hotel Mediterané e todo mundo de branco começava a cantar, se abraçar e se beijar, numa tristeza de adeuses pelo ano que morria e de alegria pelo que nascia, ao som daquele enorme coral. Era como no samba-choro de Assis Valente, de 1938, cantado por Carmem Miranda:

“beijei na boca de quem não devia
peguei na mão de quem não conhecia
dancei um samba em traje de maiô
e o tal do mundo não se acabou.”

Hoje, a atração é o grande show, no palco armado na praia, com os cantores mais populares do momento e a chuva colorida de fogos, emergindo da Baia da Guanabara, na hora da virada. Depois, esperar o amanhecer acreditando na folhinha que diz ser o dia da Confraternização e Paz universal.  Oxalá! Oxalá!

Deixe aqui o seu nome e o seu comentário

Widget is loading comments...