sexta-feira, 29 de junho de 2018


Fantasia ou realismo mágico?

A fazenda ficava entre Manaus e Itacoatiara, distrito de Amatari, como já disse. De lá, diziam ver, de noite, navios iluminados aparecerem na foz do rio Madeira. E essa imagem era associada a Cobra-Grande. Boiúna. Lembro-me de um menino que fazia xixi na rede todas as noites, e todas as manhãs prometiam entregar-lhe a Boiúna, se ele não se corrigisse. Cheio de medo aí é que ele fazia. E o pobre apanhava.
 Essas ameaças eram sempre associadas ao Matinta Perera, uma espécie de Saci de duas pernas; ao Curupira, com os pés voltados para trás; ao Mapinguari, cuja invencibilidade estava no umbigo ou a M´boitatá, a cobra de fogo. Fogo fátuo? Esses eram os bichos papões do lugar.
Havia ainda as histórias de botos, seduzindo donzelas e de Iaras encantando rapazes. Os mais bonitos ou bonitas, que a lenda despreza os feios. Os feios são sempre maus: os bonitos sempre bons. Ai de mim! Mas esses eram assuntos para gente grande. Principalmente quando se sabia do nascimento de algum filho de boto. Sonhar a beira dos barrancos, tomar banho de rio, nua, passear de canoa em lagos e igarapés eram álibis perfeitos para o aparecimento súbito de uma barriga grande em qualquer moça.
Lembro-me de tia Raimunda (que não merecia esse nome e em boa hora lhe arranjaram o apelido de Miminha), tia Miminha, passeando de mãos dadas comigo, em frente a casa, me contando que certa vez ouvira o canto da Iara, bem ali, deslizando pelo rio. E entoava os cânticos sem palavras, que sem eu saber me enchiam de melancolia.
Essas e outras histórias, essas e outras personagens, não são lendas, não são mentiras, na vida do amazônida. São verdades de um povo cuja vida é comandada pelo rio e pela floresta. Histórias de caboclos. Não confundir com índios. Esses pertencem a outro seguimento do mesmo espaço. Esse é o meu: "negro da terra".

terça-feira, 5 de junho de 2018


Educação

Tia Isaura servia de professora as crianças que circundavam a casa: filhos dos trabalhadores e sobrinhos. De ambos os sexos. Meus avós mal sabiam assinar os nomes, mas construíram um grande patrimônio, que os filhos alfabetizados, não quiseram ou souberam cuidar. Não lembro de ter participado regularmente de suas aulas, mas com certeza me alfabetizei vendo e ouvindo o bê-a-bá ensinado aos outros. Pois quando fui para cidade já sabia ler.
 O ensino era cantado. Os livros eram a cartilha e a taboada. Havia também um caderno de caligrafia. Todas as letras dos adultos se pareciam. Tia Isaura não era formada e como constatei mais tarde, era apenas alfabetizada. Mas representou um grande papel: ensinou a ler e escrever a muita gente. O depois era com cada um.
O método usado era leitura em voz alta, ditado e cópia. A taboada era tomada com os alunos de pé em círculo. Havia castigo: a palmatória. Quem respondesse errado levava bolo. Os erros de texto eram reescritos até acertar.
Ela não falava, gritava. De longe podia-se ouvir seus gritos: um mais um; seis vezes quatro; oito menos cinco... Embora eu ficasse isento de tudo: exercícios e castigos, na hora da taboada eu tremia de medo, ouvindo o estalido da palmatória nas mãos dos meninos. Resultado: ignoro as famosas quatro operações até hoje. A leitura, o ditado e a cópia eu tirava de letra. Sem obrigatoriedade, é claro. Eu era um espécie de senhorzinho. Só fazia o que queria. Deu nisso.
Entre Manaus e Itacoatiara, havia um simulacro de escola pública, num lugar chamado Colônia, onde também havia uma Agência de Correio, cuja representante era uma senhora chamada Zinha, mulher de meu tio Rogério. Mas era muito longe. O transporte, é claro, era canoa. Levava algumas horas de viagem da fazenda até lá. Educação era supérfluo ou luxo. Mudou muito?

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