A Casa
A vida da fazenda
concentrava-se na casa grande, onde moravam meus avós, a família, os parentes e
aderentes. A casa era realmente grande. Ficava de frente para o rio Amazonas. A
margem esquerda. A primeira casa era de sobrado. Um dia, um raio fê-la pender
para um dos lados, qual torre de Pisa cabocla. Meu avô mandou demoli-la para
construir outra de um só andar. É dessa que me lembro bem. Tinha um enorme
salão, de onde saia um corredor com três quartos de cada lado, uma sala de
refeições, despensa, cozinha e dependências sanitárias, só usadas por motivo de
doença. As necessidades fisiológicas eram feitas num local fora da casa,
apelidado de Quinze. Com o perdão da velha Senhora. De forma que quando se
dizia: fulano foi ao Quinze, todo mundo sabia o que ele tinha ido fazer. A
noite usava-se penicos.
O primeiro quarto, a direita,
era de meus avós. Quase todo mundo
dormia em rede. As roupas eram guardadas em grandes baús ou malas. Nos outros
quartos dormiam os tios, as tias, os primos e os hóspedes. Havia armadores para
redes em todos os cantos da casa. No último quarto, a esquerda, ficava o
oratório de minha avó, com os santos de sua devoção. Aí, minha tia Isaura,
exercia seu papel de sacerdotisa, nos meses de maio e dezembro, puxando a
novena de Nossa Senhora da Conceição.
A sala de refeições tinha
uma comprida mesa, ladeada por dois bancos, de seu tamanho. Numa das
cabeceiras, uma cadeira de alto espaldar. Trono de meu avô. A direita, minha
avó. Nos outros lugares, no horário do café, certos trabalhadores que recebiam
as ordens do dia; nas outras refeições os parentes sentavam-se, segundo sua
importância. Que eu me lembre isso era natural, nada de etiquetas.
A seguir, a despensa,
contendo mantimentos para a casa e para o aviamento dos trabalhadores, tarefa
que minha tia Zulmira acumulava com a cozinha. Não havia água encanada. O
precioso líquido era trazido do rio para casa todas as manhãs. Guardado em
bilhas e grandes potes de barro. Para a limpeza, a água era armazenada em
tonéis de óleo. Bebia-se em canecas de flandre ou ágate, cada um tinha a sua.
Na parte da frente da casa,
havia uma escada em leque, que dava para um pátio acimentado, ladeado de
bancos, para as conversas do anoitecer ou das noites de festa ou luar. Por trás
dos bancos, perfumados pés de jasmins-do-cabo. Mais a frente havia um chafariz,
que nunca vi funcionando. Ao lado direito, já quase a beira do barranco, um
frondoso pé de manga da Bahia, com bancos rústicos embaixo, e ao lado, uma
velha canoa, suspensa por forquilhas, cheia de terra estrumada, onde minha avó
cultivava seus coentros e suas cebolinhas. A frente, o rio, profundo, barrento,
no seu incessante caminhar. Uma vez por outra, uma canoa, um batelão, uma
lancha, um navio ou um grande paquete, do Loide ou das estranjas. No ar, a
melancolia de seus apitos anunciando chegadas ou partidas.
Bela descrição, mestre Soeiro. Você pegou bem o estranho eflúvio do espaço e do tempo entre as paredes de uma casa...Nelas estão pedaços de nós.
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